A decisão da Starlink de voltar atrás e cumprir as determinações do STF e da Anatel e bloquear o acesso à rede social X, em um aparente recuo da sua posição inicialmente manifestada à agência (de maneira informal, diga-se de passagem) tem explicações muito mais profundas do que apenas uma batalha vencida por Alexandre de Moraes na queda de braço com Elon Musk.

Se o X sempre foi visto por Elon Musk como um megafone para sua batalha ideológica, desde que forçou a barra para adquirir a plataforma quando ela ainda se chamava Twitter, a Starlink é outra coisa: trata-se de um negócio com grande potencial que precisa ganhar espaço no Brasil rapidamente, antes que os concorrentes cheguem.

Mas além disso, a Starlink tem por trás algo muito maior: é evidentemente um projeto de Estado dos Estados Unidos de garantir a hegemonia norte-americana no espaço.

Um projeto geopolítico

Não se trata de teoria da conspiração. Há fatos concretos, inclusive testemunhados por este noticiário, que reforçam essa tese. Por exemplo: em março desse ano, durante a conferência Satellite 2024, um dos principais eventos mundiais do setor e que é realizada anualmente em Washington (com cobertura da TELETIME), o diretor adjunto da National Reconnaissance Office (NRO, uma espécie de órgão de inteligência e pesquisa estratégica do governo dos EUA), Troy Meink, falou para uma plateia de centenas de pessoas, de maneira aberta, que os EUA consideram o espaço como uma das principais fronteiras tecnológicas e um território em disputa.

“Temos convicção de que nossos inimigos externos estão nos desafiando para destruir ou interferir em nossa tecnologia e pela primeira vez nossa tecnologia está em risco com ataques constantes de cibersegurança e interferência”, diz ele. Segundo a análise da NRO, a China será um competidor importante no mercado de satélites em 2030. “Temos que inovar e inovar rápido, ou perdemos a corrida”, disse Meik, citando também a Rússia como um adversário nessa disputa. E foi além: o governo dos EUA tem trabalhado com a política de fazer “hosted payload” com empresas norte-americanas, sem citar casos específicos. Ou seja, utiliza capacidade de satélites comerciais para incluir tecnologias de uso reservado.

Um outro bom exemplo de como os EUA levam a sério essa nova corrida espacial é o fato de terem criado, no final de 2019, a US Space Force, uma Arma Militar, com o mesmo status da Força Aérea, Marinha ou Exército. A US Space Force também contrata serviços da SpaceX.

No ano passado, segundo diversos relatos de imprensa de publicações renomadas, Musk tentou “se meter” na guerra da Ucrânia, cortando o sinal da Starlink utilizado por drones ucranianos, atrapalhando um ataque. Foi aparentemente repreendido pelo Departamento de Defesa dos EUA, que por meio da OTAN apoia tecnologicamente o país atacado pelos russos.

Em julho deste ano, a Reuters noticiou, e outros veículos confirmaram, um novo projeto conjunto entre a controladora da Starlink, a SpaceX (que por si só já é o principal veículo de lançamento de satélites civis, militares e naves tripuladas dos EUA), e a NRO para o desenvolvimento de uma constelação de satélites de uso exclusivamente militar. A SpaceX e a Starlink são duas empresas presididas pela mesma pessoa: Gwynne Shotwell, hoje uma das executivas mais relevantes no mercado de satélites global.

Analistas que conhecem o mercado de satélites ouvidos por este noticiário, brasileiros e estrangeiros, dizem que por mais genial e inovador que seja Elon Musk em suas empresas, e por mais que tenha disposição de investir boa parte de sua fortuna na SpaceX, dificilmente ele chegaria aos resultados obtidos, seja no lançamento de foguetes reutilizáveis, seja numa constelação global de satélites de banda larga sem precedente, sem investimentos do governo dos EUA. Hoje Musk lança mais satélites do que qualquer outra empresa e, sozinho, opera uma constelação maior do que a soma de todos os outros satélites comerciais em órbita.

O Estado brasileiro até tem planos de desenvolvimento do setor de satélites guardados nas gavetas. Mas até hoje faltou orçamento e ação política para colocar os projetos de pé. E quando acontecem, os ciclos são longos: o projeto Brasilsat, para satélites de comunicação da então-estatal Embratel, aconteceu nos anos 1980. O Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicação (SGDC) só veio 30 anos depois, e parou em um único artefato, sem previsão de substituição ou atualização tão cedo.

Em 2012, foi criado por Portaria do Ministério da Defesa o PESE (Programa Estratégico de Sistemas Espaciais), atualizado pela última vez em 2018, e que previa até mesmo uma constelação de satélites de órbita baixa para a área de Defesa, a ser lançada até 2022. Pouco do PESE saiu do papel: dois satélites de observação com tecnologia finlandesa que são parte da constelação Lessônia, lançados em 2022, o SGDC (que começou a ser planejado bem antes) e o COPE (Centro de Operações Espaciais, que controla o SGDC).

O que se viu, desde então, foi uma opção do Estado brasileiro, tanto por parte de órgãos civis de governo, setores militares, ministérios, governos estaduais e até mesmo órgãos do Judiciário, em adquirir, em processos de compras públicas, capacidade da Starlink. Isso não só é um bom negócio para a empresa de Elon Musk como ajuda no projeto de manter o Brasil debaixo do guarda-chuva tecnológico dos EUA, evitando aproximações com outros países que um dia terão suas constelações próprias: a China trabalha forte nesse sentido; a Europa vai na mesma linha, ainda que mais atrasada; Índia e Canadá têm seus programas espaciais… Sem falar em concorrentes norte-americanos vão entrar nesse mercado, como a Amazon. Todos, potencialmente, podem abocanhar mercado da Starlink.

Um bom negócio

Mas é preciso ressaltar que a Starlink não é a única empresa de conectividade de satélites que existe. Há várias outras opções, seja em satélites de órbita baixa (como a OneWeb), seja em satélites de órbita média (O3b), seja em satélites geoestacionários onde há dezenas de opções para uso corporativo/governamental, seja em opções de acesso residencial, como HughesNet e Viasat, por exemplo. Até dois anos atrás, tudo era feito sem Starlink utilizando-se outras opções que seguem funcionando. A Starlink sem dúvida mudou a equação quando cobertura, capacidade e custo são ponderados ao lado de facilidade de instalação e operação… O fato é que a Starlink não é, por si só, indispensável. Mas ela é, a cada dia, mais relevante.

Por estas razões, acabou se tornando a opção número 1 em compras públicas e privadas, seja em razão da combinação preço/qualidade, pelo marketing digital eficiente e porque as alternativas mais competitivas ainda demoram alguns anos para chegar. E é justamente esse tempo que a Starlink aparentemente não quer perder.

Hoje a Starlink cresce cerca de 10 mil a 15 mil assinantes por mês no Brasil. Perde apenas para a Claro e para a Vivo em crescimento no mercado de banda larga fixa e já chega a quase 230 mil clientes (dados de julho).

No mundo, estima-se que a Starlink tenha cerca de 3,4 milhões de assinantes. O Brasil, portanto, teria perto de 7% de participação nos negócios globais da empresa. Não é pouca coisa para uma empresa arriscar jogar o mercado fora por uma queda de braço político-ideológica de seu controlador.

A Starlink não está imune à regulamentação local: tem autorização da Anatel para explorar a sua constelação no Brasil com até 4,4 mil satélites até 2027. Mas já pediu autorização para mais 7 mil, porque quanto mais clientes coloca em sua base, mais o serviço se degrada, e para isso precisa ampliar a capacidade com mais satélites. A Anatel ainda não autorizou essa ampliação de frota. Caso optasse por ignorar a regulamentação brasileira, além de ameaçar ter o serviço suspenso, poderia ser denunciada a organismos internacionais, como a União Internacional de Telecomunicações, o que poderia comprometer sua relação regulatória também com outros países na liberação de espectro ou direito de operação como satélite estrangeiro.

Fazer a briga ideológica do X transbordar para a Starlink poderia, no limite, comprometer os negócios da empresa, que não só tem um potencial de crescimento importante no Brasil, como carrega ainda a um forte componente geopolítico que os EUA não podem arriscar perder. Talvez a soma destes fatores explique o recuo da Starlink.

Setor em debate

Nos próximos dias 1 a 3 de outubro a TELETIME organiza em parceria com a Glasberg Comunicações, no Hotel Windsor Marapendi, no Rio de Janeiro, mais uma edição do Congresso Latinoamericano de Satélites. Trata-se do principal e mais tradicional evento brasileiro voltado ao mercado de satélites e que este ano terá, entre outros temas, debates voltados a uma política nacional de satélites; uso de satélites em aplicações de governo, aplicações militares e políticas públicas; desafios e inovações tecnológicas; novas constelações entre outros temas. Mais informações pelo site www.satelitesbrasil.com.br

Fonte: Teletime